quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Sou Deus?


Antes de tudo, não tenho tantas pretensões como dizem por aí. Apenas sigo através do tempo, sem malas, desprevenido de roupas, sem bagagem alguma. Não tenho sequer lugar para morar. Vivo, nem mesmo sei se vivo, fazem-me vivo a todo o momento por qualquer coisa, ainda mais se essa coisa é uma necessidade.
Como eu disse, nem lugar eu tenho para morar. Resido nas palavras que me evocam, no choro, na alegria e até mesmo na desgraça. Assim, sem pretensões, sigo observando a quase tudo o que acontece. Então dizem:
— Por que não fez nada?
— Eu não acredito em Deus!
— Graças a Deus!
— Deus onde tu estás?
— Obrigado, meu Deus!
— Deus é brasileiro!
— Foi Deus que me deu!
— Deus te castiga!
— Pelo amor de Deus!
— Se Deus quiser!
            Esse último, até mesmo eu uso quando as coisas parecem difíceis. Uso mais para apelar. Mas, apelar para quem, se eu sou o que me dizem que sou? Deus. Como pode o próprio Deus apelar? Para quem? Poderia rir de mim mesmo, mas seria demais para um Deus rir de sua própria solidão, de não ter a quem recorrer, por isso, sem ter muito ao que fazer, mas sempre me dizem que tenho que resolver uma coisa ou outra, fico a observar a vida alheia, enquanto dizem “Foi Deus quem quis”, “Foi da vontade de Deus”. Mas, eu só observo. Não posso carregar o mundo nas costas.
            De tanto dizerem que assim sou, até mesmo eu, em alguns momentos acredito que posso ser assim, mas não me agrada muito essa ideia de ser supremo, a divindade. Assim, pareço muito diferente daquilo que realmente sou. Se eu sou o que penso que sou, então por que acreditar que posso ser como querem que eu seja? É muita presunção querer determinar o destino e vida de alguém, ainda assim, querem determinar o que devo ou não fazer. “Meu deus, por favor, isso...”, “Meu Deus, por favor, aquilo...”. Sorte de vocês que podem escolher o que fazer, ser e até mesmo onde vão passar as férias de verão. Eu, não! Não tenho direito nem de dormir! Nas refeições, já nem sento à mesa. Ainda reclamam!
            Devo admitir que essa coisa de ser Deus, é de uma responsabilidade tremenda. Devo estar em todos os lugares, resolver todos os problemas do mundo, dar carros de presentes para as pessoas, permitir que pessoas corruptas submetam nações inteiras à miséria da fome, da guerra, etc. Se eu fosse falar de todos os meus compromissos, passaria séculos digitando, aqui, nesse notbook. Agora, você deve está pensando que Deus não usa dessas coisas. Acertei? Posso ser Deus, mas devo estar antenado nas novidades que o mundo moderno cria. Só tenho cuidado de não me tornar nomofóbico. Vejo tanta gente viciada em tecnologia que não olha mais nos olhos de outras pessoas. Eu querendo bater um papo e vocês se calam, são indiferentes.
As redes sociais nem se fala. Há cada coisa que nem mesmo eu sei como resolver. Já pensou se eu não tivesse uma conta no facebook, como poderia dar meus likes e comentar os post de milhões de pessoas? É motivo de ofensa se eu não verificar as postagens em meu nome. Tenho que dizer, sinto muito, não fico online das 23 horas até às 9 da manhã. Mesmo a contragosto da maioria, quero dizer que o ditado que diz que Deus não dorme, comigo não funciona. Durmo e não gosto de ser incomodado. Desligo o smartphone e apago de vez.
Ahhhhh... se vocês soubessem como eu tenho vontade de não ser Deus! Acho que não fui criado para isso. Prefiro ser um professor, um gari, uma bailarina, um bêbado, uma prostituta, um pai, um irmão, o aleijado. E você teria coragem de ser Deus pelo menos por um dia? Eu teria a coragem de ser você pela vida toda. Daqui de onde estou, vejo que a vida de cada um não é mais nem menos complicada. Todos vocês têm seus próprios problemas, mas não perdem o velho hábito de jogar tudo nas minhas costas, não são capazes de resolvê-los. Criam deuses, sou apenas um deles, me chamam como querem, também criam seus próprios demônios, e depois não têm a coragem de conviver com eles. Quem pari seus deuses e demônios que os embale. Até agradeço pelos novos deuses que surgem graças à criatividade humana. Quem sabe fazemos uma força tarefa para diminuir a fila da solução de problemas.
Não sou dono de mim porque, sem menos esperar, já estou em algum lugar diferente daquele que estava antes. Não posso piscar os olhos, sou chamado em uma igreja, num leito de morte, em um terreiro de umbanda, até mesmo na piadinha de uma adolescente. Outro dia mesmo, um louco assistindo a TV, ouviu e viu um sacerdote budista afirmando que eu habito no Evereste. Quase cai de costas quando vi aquilo. Lá é frio, dá um trabalho imenso para escalar aquele monte, sem contar que teria que desviar de corpos e muito lixo espalhados dos pés ao alto do Evereste.
Ao mesmo tempo em que observava o louco, pensei que ele pudesse acreditar no que quisesse. Quem sou eu para interferir no credo de alguém? Deus me livre! Estão vendo? O convívio com vocês e a força do habito perseguem-me! Se o louco acredita nisso, então estarei lá também. Só o frio vai incomodar um pouco. Não tenho medo de altura porque se tivesse, não moraria nos céus, lugar onde a maioria de vocês acredita que eu passe meu tempo. Prefiro passa-lo na cabeça, na mente de cada um, porque, assim, posso estar em qualquer lugar. Concordam?
Em breve, tirarei férias mais que merecidas, mas antes de sair de viagem por ai, mundo a fora, terei uma última missão. Confesso que estou apreensivo porque não há muito que se fazer se as pessoas são livres, vivem como querem, fazem as piores escolhas e depois, de acordo com seus interesses, culpam-me ou me absolvem de suas trapalhadas. Eu, por exemplo, não escolhi ser Deus. Vocês dizem-me o que sou, o que devo fazer, mas não me dão forças nem liberdade nem escolha. Nem mesmo me perguntam se eu gostaria de ser assim. Se assim sou, então me deixem para que eu seja e faça aquilo que não acreditam que podem ser e fazer: Deus.

 Agosto de 2016

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