quarta-feira, 21 de setembro de 2016

O rato de meias

         

        Eu sei que o tempo é imbatível quanto a sua velocidade. Carros novos ficam velhos, árvores ficam centenárias e os seres humanos ficam ruins de memória, esquecidos de tudo e de quase todos. É inegável que anos a fio de trabalho estressante nos deixam cansados como burros velhos, estafados até à alma, esquecendo com facilidade qualquer coisa por mais simples que seja. E esta coisa pode estar dependurada no pescoço, em cima da cabeça ou nas próprias mãos. Quem nunca procurou os óculos e, depois de tanto procurar, passou a mão sobre a cabeça e o encontrou? E caneta? Quem nunca ficou louco de procurá-la, mas depois de uma boa olhada nas mãos percebe que esta ali, em punho, pronta para escrever.  A idade nos trai, faz-nos de tolos, dar risos bobos e depois constatar que somos isso mesmo. O tempo...
         Num desses episódios inesquecíveis de esquecimento quase vou à loucura por achar que realmente havia esquecido onde coloquei um belo par de meias pretas e só um pouco suadas. Chego em casa, uma das primeiras coisas que faço e retirar os sapatos que me matam e em seguida as surradas meias que passam o dia cozinhando meus pés. Jogo cada meia em seu respectivo sapato. Meia da direita, no sapato da direita; meia da esquerda, no sapato da esquerda. Sei que isso é quase toque ou o é, mas sou assim meio sistemático mesmo. Morro de medo de uma das meias cair fora do sapato, por isso tenho cuidado de soca-las em cada sapato com muita competência até ter a certeza de que de lá não sairão. É quase como um credo.
        O que eu mais temia aconteceu. Em um dia, fui pegar os sapatos, vi que dentro deles não estavam as meias. Procurei um pouco mais, ainda era cedo da manhã, mas de partida para o trabalho, deixei de lado aquela momentânea curiosidade. Minha loucura começou ali naquele instante. Fui ao trabalho. Voltei do trabalho. Ideia fixa na cabeça: onde deixei minhas meias? Por alguns momentos me convenci de que as havia deixado em outra parte da casa. E, disso convencido, comecei a procura-las em outros lugares. Debaixo da cama, dentro da máquina de lavar, dentro do armário, dependuradas nas cordas de roupas. Em nenhum lugar as encontrei.
        Segui por dias convencido de que estava ficando velho mesmo, esquecido até de onde teria colocado minhas cativas meias pretas que tanto as estimava. Contei a história a amigos e, dentre muitos comentários diziam “Nossa! Você já olhou bem as coisas na tua casa?”, “É a idade, amigo. Já aconteceu isso comigo lá em casa”, “ (...) outro dia mesmo esqueci meu celular dentro da geladeira. Morri de rir depois!” Como não acreditar que eu realmente estava ficando mais velho e, que já na curva dos 40, andava meio esquecido? Voltei para casa depois de ouvir tantos comentários e elogios sobre a minha mais nova habilidade de esquecer coisas. Chegando em casa não me dei por convencido, algo me mandava procurar mais as meias em qualquer lugar até mesmo dentro da geladeira, o que parece absurdo, mas procurei. Eu tinha certeza que minhas meias não sairam daqueles sapatos, andando por ai, ir ao meu trabalho por força do hábito, passear pela cidade, não! Eu tinha a certeza de tê-las deixado dentro de cada sapato. Estava ficando louco. Todas as vezes que passava pelos sapatos, sempre me perguntava em voz alta “onde estão minhas meias?”,  eu estava louco!, para convencer-me de que, de fato, as tinha deixado lá, naquele lugar, onde agora estavam somente meus sapatos vazios sem suas companheiras de todos os dias.
            Não me dei por satisfeito. Depois de escovar os dentes pela manhã bem cedo, fui à cozinha e vi que a mesa estava suja com pegadas de rato. Havia acontecido uma festa de ratos na minha cozinha na noite passada. Um nojo me subiu à mente. Se pudesse, teria mergulhado minha cozinha numa piscina de água sanitária para limpar tudo. Tudo estava sujo, era o que eu pensava. Os ratos devem ter feito xixi e caca em todo lugar. Limpei tudo! Depois do serviço feito, fui à caça aos ratos. Batia enlouquecidamente no fogão revirando-o de ponta a cabeça para que os bichos saíssem de lá. Uma das pragas sai de lá, pulando, fazendo um qui qui qui sem parar depois que acendi o forno para afugentá-lo. Saiu sorrateiro para debaixo da máquina de lavar. Foi quando tive a ideia de lavar toda a cozinha depois de tê-la detetizado com água sanitária. Àgua acima e água a baixo. Chuá! Chuá! Era água que não acabava mais. Sumiu. O danadinho sumiu no meio do aguaceiro. Nunca mais o vi.
Sabia que estava ficando velho, cabelos brancos denunciam isso, o raciocínio mais lento também, mas não estava louco. Nunca estive mais louco do que naturalmente já sou. Como eu esqueceria do lugar onde havia colocado minhas meias? Se elas não saíram andando de dentro de casa, como poderiam ter criado asas e voado para outras partes? Não estava certo. Foi ele!! Foi ele! Foi aquele rato fedido que roubara as minhas meias! Por dias, segui imaginando a que ponto poderia chegar a minha loucura ou esquecimento, agindo com mais atenção do que de costume para não esquecer a mais nada. 
         Tudo que sei sobre os ratos é que eles nunca roubavam meias. Já roeram roupas de reis. Roubam queijos de ratoeiras, fogem de gatos como o diabo da cruz... mas roubar meias? Quem diria! Eu sabia que não estava louco! Que alívio! Tudo bem que minhas meias estivessem só um pouco sujas, mas a ponto de ter cheiro ou formato de queijo, jamais me passou pelo sentido.
Maio de 2016.

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