Depois
de mais um dia de trabalho cansativo lembro que em casa não há nada para comer
nem se quer um pão de outro dia. Sigo para um supermercado perto da minha casa,
em outro bairro, tão logo chego à cidade. A vida de solteiro tem dessas
obrigações que resistem ao tempo, à falta de coragem e ao cansaço.
Passeio
pelos corredores do supermercado, meio despretensioso, mas de olho nos preços,
nas pessoas que entram e saem de lá enquanto fico perambulando de gondola em
gondola. Coloco alguns pães, queijo e um pouco de presunto na cesta que levo
como um pêndulo imóvel em minhas mãos. Vi que passaria a noite inteira ali e
não saberia ao certo o que levar para casa, então decidi ser mais prático e me
conformar com um belo par de sanduíches naquela noite.
Cansado
como estava naquele dia, rezei para não ter filas nos caixas, mas a oração foi
pouca, acho que não rezei com muita fé e, as filas estavam lá atravancando meu
caminho e testando minha paciência. Numa das filhas perto da qual eu estava, vi
três figuras que me chamaram atenção. Um homem, numa posição mais privilegiada,
com jeito de aposentado e um semblante tranquilo e ao mesmo tempo atento aos
produtos que retirava do carrinho; um garoto que o ajudava retirando um a um os
poucos mantimentos que aquele senhor comprara; por último, uma senhora já com
muitos cabelos brancos, se apoiava na guia de condução do carrinho do
supermercado, com o queixo recostado à guia, com um olhar baixo parecendo
contar com os olhos o que o garoto e o velho retiravam do carrinho.
Durante
muitos minutos continuei olhando aquelas pessoas que pareciam ser de uma mesma
família, os avós aposentados fazendo a feira na companhia de um neto. O menino,
com os pés descalços, encardidos de uma poeira negra, trajando uma roupa que
também estava suja, me fez voltar no tempo e pensar quantas vezes eu também fui
companhia de meus pais no supermercado. Aquele garoto me fez marejar os olhos
nas lembranças do passado, mas havia uma diferença, pois éramos eu, minhas
irmãs e meus pais; agora, eram os avós e seu neto levando para casa o pouco que
suas aposentadorias lhes permitiam comprar. Nunca imaginei que numa fila de
caixa, um garoto sujo e empolgado com as compras, agindo alegremente, pudesse
me fazer esquecer uma fila entediante e cansativa de um supermercado.
Olhei
para os lados para ver se alguém estava me vigiando, olhando em meus olhos
marejados. Cheguei até a pensar que pudesse me questionar o porquê das poças de
lágrimas nos olhos. Levantei a cabeça, olhei para o teto como quem fazia uma
inspeção sobre a estrutura daquele lugar, só para disfarçar o que senti naquele
momento que me abateu de tanta nostalgia, ternura, olhando aquele garoto.
A
fila andava, e eu continuava a observa-los. Eles já estavam saindo do caixa eu
os perseguia com o olhar. Antes disso, percebi que o garoto retirara do carro
os produtos apenas com uma das mãos e, com a outra, protegia algo que eu ainda
não sabia o que era. O carrinho estava secando. Não dava mais para o menino
esconder do avô o que tinha em baixo de sua pequena mão: um pacote de biscoito
recheado. Não dava mais para esconder, era hora de colocar o biscoito no balcão
do caixa, e isso o garotinho o fez. Levou cuidadosamente o biscoito ao balcão,
mostrando ao avô, sem dizer uma palavra, pois o seu gesto era mais que um
pedido. Da mesma forma, o avô olhou para o biscoito, com um olhar que falava
que aquele lanche não poderia passar no caixa sem antes terminar de retirar do
carrinho os poucos produtos mais importantes. O carrinho secou.
Fiquei
apreensivo pensando no que fazer se aquele avô não levasse o biscoito para o
garoto. Senti-me aflito, me senti menino sujo, empolgado, querendo somente um
pacotinho de biscoito. O garoto permaneceu com o biscoito nas mãos sem dizer
nada. O avô o olhou. A avó com as mãos abaixadas e entrelaçadas nada poderia
fazer... Enquanto isso, aquela situação me revirava as lembranças de um certo
menino que um dia também quis um pacote de biscoito, quis um brinquedo e as
condições financeiras da época não permitiam nada disso. O choro era
inevitável. Chorei com o sentimento de um pai ou avô que nada podem fazer sem
antes satisfazer as necessidades de um lar e, se sobrasse algum dinheiro, quem
sabe comprar um biscoito para o neto.
O
avô, com o olhar de um desconhecido de olhos marejados, pegou o biscoito das
mãos do garoto. O pobre menino juntou as mãos e as levou até a altura da boca
que deixava escapar um sorriso tímido, mas vivo e verdadeiro. Respirei. Engoli
o choro.
Sai
vagarosamente daquele lugar, meio perdido procurando o casal de avós e seu
neto. Não sei ao certo que direção eles tomaram levando suas poucas sacolas. O
que sei é que eu já estava ali a tanto tempo, mergulhado entre lembranças e
realidade e não percebi que os minutos avançavam. Era hora de ir para casa.
Depois de tudo isso, percebi que minha fome já não era mais o foco dos meus pensamentos
e os sanduíches não eram mais saborosos que aquilo que vivi naquele início de
noite e, ainda, que as diferenças entre mim e aquela família eram apenas de
pessoas, lugares e situações, mas a verdade é que uma das semelhanças estava
ali, naquelas poucas sacolas que levávamos, que eram poucas, mas repletas de
felicidade.
Novembro de 2014.
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