Antes de tudo, não
tenho tantas pretensões como dizem por aí. Apenas sigo através do tempo, sem
malas, desprevenido de roupas, sem bagagem alguma. Não tenho sequer lugar para
morar. Vivo, nem mesmo sei se vivo, fazem-me vivo a todo o momento por qualquer
coisa, ainda mais se essa coisa é uma necessidade.
Como eu disse, nem
lugar eu tenho para morar. Resido nas palavras que me evocam, no choro, na
alegria e até mesmo na desgraça. Assim, sem pretensões, sigo observando a quase
tudo o que acontece. Então dizem:
— Por que não fez nada?
— Eu não acredito em
Deus!
— Graças a Deus!
— Deus onde tu estás?
— Obrigado, meu Deus!
— Deus é brasileiro!
— Foi Deus que me deu!
— Deus te castiga!
— Pelo amor de Deus!
— Se Deus quiser!
Esse
último, até mesmo eu uso quando as coisas parecem difíceis. Uso mais para
apelar. Mas, apelar para quem, se eu sou o que me dizem que sou? Deus. Como
pode o próprio Deus apelar? Para quem? Poderia rir de mim mesmo, mas seria
demais para um Deus rir de sua própria solidão, de não ter a quem recorrer, por
isso, sem ter muito ao que fazer, mas sempre me dizem que tenho que resolver
uma coisa ou outra, fico a observar a vida alheia, enquanto dizem “Foi Deus
quem quis”, “Foi da vontade de Deus”. Mas, eu só observo. Não posso carregar o
mundo nas costas.
De
tanto dizerem que assim sou, até mesmo eu, em alguns momentos acredito que
posso ser assim, mas não me agrada muito essa ideia de ser supremo, a
divindade. Assim, pareço muito diferente daquilo que realmente sou. Se eu sou o
que penso que sou, então por que acreditar que posso ser como querem que eu
seja? É muita presunção querer determinar o destino e vida de alguém, ainda
assim, querem determinar o que devo ou não fazer. “Meu deus, por favor,
isso...”, “Meu Deus, por favor, aquilo...”. Sorte de vocês que podem escolher o
que fazer, ser e até mesmo onde vão passar as férias de verão. Eu, não! Não
tenho direito nem de dormir! Nas refeições, já nem sento à mesa. Ainda
reclamam!
Devo
admitir que essa coisa de ser Deus, é de uma responsabilidade tremenda. Devo
estar em todos os lugares, resolver todos os problemas do mundo, dar carros de
presentes para as pessoas, permitir que pessoas corruptas submetam nações
inteiras à miséria da fome, da guerra, etc. Se eu fosse falar de todos os meus compromissos,
passaria séculos digitando, aqui, nesse notbook.
Agora, você deve está pensando que Deus não usa dessas coisas. Acertei? Posso
ser Deus, mas devo estar antenado nas novidades que o mundo moderno cria. Só
tenho cuidado de não me tornar nomofóbico. Vejo tanta gente viciada em
tecnologia que não olha mais nos olhos de outras pessoas. Eu querendo bater um
papo e vocês se calam, são indiferentes.
As redes sociais nem se
fala. Há cada coisa que nem mesmo eu sei como resolver. Já pensou se eu não tivesse
uma conta no facebook, como poderia
dar meus likes e comentar os post de milhões de pessoas? É motivo de
ofensa se eu não verificar as postagens em meu nome. Tenho que dizer, sinto
muito, não fico online das 23 horas até às 9 da manhã. Mesmo a contragosto da
maioria, quero dizer que o ditado que diz que Deus não dorme, comigo não
funciona. Durmo e não gosto de ser incomodado. Desligo o smartphone e apago de vez.
Ahhhhh... se vocês
soubessem como eu tenho vontade de não ser Deus! Acho que não fui criado para
isso. Prefiro ser um professor, um gari, uma bailarina, um bêbado, uma
prostituta, um pai, um irmão, o aleijado. E você teria coragem de ser Deus pelo
menos por um dia? Eu teria a coragem de ser você pela vida toda. Daqui de onde
estou, vejo que a vida de cada um não é mais nem menos complicada. Todos vocês
têm seus próprios problemas, mas não perdem o velho hábito de jogar tudo nas
minhas costas, não são capazes de resolvê-los. Criam deuses, sou apenas um
deles, me chamam como querem, também criam seus próprios demônios, e depois não
têm a coragem de conviver com eles. Quem pari seus deuses e demônios que os
embale. Até agradeço pelos novos deuses que surgem graças à criatividade
humana. Quem sabe fazemos uma força tarefa para diminuir a fila da solução de
problemas.
Não sou dono de mim
porque, sem menos esperar, já estou em algum lugar diferente daquele que estava
antes. Não posso piscar os olhos, sou chamado em uma igreja, num leito de
morte, em um terreiro de umbanda, até mesmo na piadinha de uma adolescente.
Outro dia mesmo, um louco assistindo a TV, ouviu e viu um sacerdote budista
afirmando que eu habito no Evereste. Quase cai de costas quando vi aquilo. Lá é
frio, dá um trabalho imenso para escalar aquele monte, sem contar que teria que
desviar de corpos e muito lixo espalhados dos pés ao alto do Evereste.
Ao mesmo tempo em que
observava o louco, pensei que ele pudesse acreditar no que quisesse. Quem sou
eu para interferir no credo de alguém? Deus me livre! Estão vendo? O convívio
com vocês e a força do habito perseguem-me! Se o louco acredita nisso, então
estarei lá também. Só o frio vai incomodar um pouco. Não tenho medo de altura
porque se tivesse, não moraria nos céus, lugar onde a maioria de vocês acredita
que eu passe meu tempo. Prefiro passa-lo na cabeça, na mente de cada um, porque,
assim, posso estar em qualquer lugar. Concordam?
Em breve, tirarei
férias mais que merecidas, mas antes de sair de viagem por ai, mundo a fora,
terei uma última missão. Confesso que estou apreensivo porque não há muito que se
fazer se as pessoas são livres, vivem como querem, fazem as piores escolhas e
depois, de acordo com seus interesses, culpam-me ou me absolvem de suas
trapalhadas. Eu, por exemplo, não escolhi ser Deus. Vocês dizem-me o que sou, o
que devo fazer, mas não me dão forças nem liberdade nem escolha. Nem mesmo me
perguntam se eu gostaria de ser assim. Se assim sou, então me deixem para que
eu seja e faça aquilo que não acreditam que podem ser e fazer: Deus.
Agosto de 2016