Vai um “pretinho” aí motóra?
Depois da escola e do almoço, me
sentei em frente de minha casa vendo o movimento da rua
e de um posto de combustível que fica do outro lado bem na direção da casa onde
vivo com meus pais. Esse posto é uma coisa muito fantástica, meio disco voador
ou pista de aeroporto. Nessa região de
Paragominas existem outros postos, mas não tão iluminados como esse.
Nesse posto,
vive uma molecada que tenta levantar um trocado para suas casas. Eu mesmo, só
os vi ali quando me sentei em frente
de casa para olhar os imensos caminhões se arrastando no pátio desse posto em um vai e vem sem parar.
Lá de casa, eu vejo e escuto tudo até mesmo quando não quero porque o barulho
de motores, arrancos e frenadas são constantes sem contar os “bibis” das
buzinas, o que é uma loucura. Apenas a rua e uma cerca de arame separam minha
casa desse pátio, assim não perco nada. Escuto a molecada gritando “vai um ‘pretinho’
aí?”, “vai um ‘pretinho’ aí?”.
Percebi que em
suas mãos os garotos levavam dois ou três apetrechos, e nenhum deles estava ali sem esse material. A tarde foi passando,
eu continuei sentado no banquinho construído pelo meu pai, quando de repente,
notei que um grupo deles corria para outra área do posto, e em meio a eles,
estava uma menina. Claro que estranhei ao ver uma garota junto com aqueles
meninos, também gritando “vai um ‘pretinho’ aí motóra?” Acho que ela já
trabalhava ali fazia algum tempo porque estava tão à vontade com os demais que
até parecia ser um deles. Sandália
de cabresto, short meio bermuda, um boné escroto na cabeça e camiseta de
moleque mesmo.
Em muitos momentos daquela tarde,
inclusive a menina, todos corriam desesperados de um lado para o outro daquele
lugar, enquanto um homem que parecia ser o gerente do estabelecimento, trajando
um uniforme azul, espantava-os de onde eles estivessem, esbravejando, fazendo
gestos com as mãos para o alto, muito irritado com a presença dos garotos ali:
— Vão pra casa de vocês ou vou chamar o conselho tutelar pra
levar todo mundo!
Enquanto
corriam, não era raro de se ouvir risos e gargalhadas entre eles porque tudo
parecia uma brincadeira, era uma festa. Novamente achegavam-se aos caminhões
dizendo, “Bora dá um ‘grau’ no caminhão motóra?” Discutiam tanto, matavam-se em
gritos e, no final de tudo, cediam lugar à garota para que pudesse usar o que
chamavam de “pretinho”.
Eu tive muita curiosidade e, naquela
tarde, não resisti e fui até a cerca de arame para ver a molecada bem de perto.
Já era um pouco tarde, e isso era possível de se notar porque o sol que, antes os
castigava, se escondia bem no horizonte do outro lado da rodovia, na direção do
meu bairro e parecia que era um espetáculo somente nosso, o que era incrível. E
nesse mesmo momento milhares de passarinhos faziam revoadas da mata em direção
ao posto procurando um lugar aquecido para repousar à noite. Enquanto isso, eu
estive parado junto àquela cerca com os dedos engatados nela. O interessante é
que eles nem notavam minha presença ali. Se me viam, ignoravam-me porque nenhum
deles olhou para mim.
Por que suas mãos eram tão sujas?
Mais de perto pude ver que nelas carregavam um pedaço de esponja e um frasco
com um líquido escuro que passavam nas rodas dos caminhões. Só assim entendi
que o líquido de cor escura era o tal “pretinho” que ofereciam aos gritos para
os motoristas. Era coisa forte porque não saia assim tão fácil das unhas e
encardia suas mãos. Passavam o produto em todos os pneus do veículo que os
deixavam com aparência de novos, tinindo, cara de zerinho, zerinho... E eu que
pensei que fosse comida...
Sem mais trabalho para o dia, a
garotada começava a se dispersar. Os meninos iam embora e a passarada chegava, fazendo
uma zoeira só, eram milhares dispersos nos ares e pareciam com os moleques
fugindo do gerente, mas, dessa vez, ele os espantava com estouros de rojões para alto. A festa continuava por conta das
aves, enquanto os meninos do “pretinho” iam para suas casas, silenciando as
gargalhadas e risos. Em outra tarde, quem sabe, as gargalhadas e os risos, o por do sol, a cerca, meu
banquinho e eu, todos estivéssemos
ali, naquele mesmo lugar.
Texto semifinalista da Olimpíada de Língua Portuguesa 2016. Autor: Arthur Silva, com orientações do Professor Eduardo Emer.