quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Hoje é dia de chuva

        

       É fim de dezembro quando ela chega, por instantes, silenciosa sem alarde. Era esperada já há alguns meses em que o sol castigava o vale onde está a cidade de Paragominas. A chuva é o alívio para todos nós que precisamos dela para alguma coisa. Há gente que precisa da chuva apenas para matar o calor, refrescar a cuca; há outras que precisam da chuva para plantar, fazer o alimento e as árvores florescerem, para saciar a fome; outras, apenas para ver que em cada gota dela há poesia e emoção, como uma melodia meio desarmoniosa, uma espessa parede de vidro estilhaçada na diagonal que lhe ajusta o vento. É janeiro, carnaval, março. É tempo de chuvas em nossas vidas.
           Tenho bem firme na memória os tempos de chuvas nos quais vivi durante a infância. Eram tempos de muita festa, de amigos e muito banho de rio no inverno, acompanhado por chuvas torrenciais que de tão fortes provocavam dor quando caiam sobre a pele. Mesmo com surra de pingos de chuva não desanimávamos. Saíamos pelas ruas do bairro onde morávamos, em busca de biqueiras e tubulações que mais pareciam cachoeiras, e sob elas disputávamos cada instante da chuva. Éramos muitos meninos e meninas que não se saciavam apenas com um minuto qualquer de chuva, sempre queríamos mais mesmo estando com os dedos enrugados de tanto frio ou que nossos pais nos chamassem para o calor de nossas casas.
       Lembro que já na adolescência, a chuva tinha outro significado e função, para mim e meus amigos. Nesta fase de nossas vidas a chuva era motivo de galhofa entre nós. Riamos de tudo, da mulher molhada por um banho de lama que algum carro jogara; da queda sobre a bicicleta em uma poça d’água, do desafio de atravessar a estrada coberta de água do rio que transbordara com o temporal. Não esqueço desses momentos em que descobríamos nossas próprias vidas sob a chuva. Aos poucos ele perdia a sua inocência juntamente a nossa, quando deixávamos de apenas brincar e passávamos a ver que a chuva era, em alguns momentos, a coadjuvante de nossas percepções, e que sorrir precisava de uma piada a mais.
          Já nem sei quantas chuvas me atingiram, o que ainda guardo comigo é a lembrança de quando minha mãe nos acalantava com suas serenas palavras sobre as noites em que dormíamos sob fortes temporais, e meu pai não estava em casa, pois estava longe exercendo seu ofício. Dona Naná dizia que dormir com chuva não era algo muito bom, fazia um mal danado, o que tivera ouvido de sua mãe e guardava consigo a ponto de fazer com que eu e minhas irmãs acreditássemos no que dizia. Ela tinha o hábito de encher um copo com água e pô-lo de ponta-cabeça, sobre ele uma colher de sal grosso, dentro de um pires em cima da mesa das refeições. Aquilo que minha mãe fazia, parecia meio mágico, uma magia do bem, que não sei ao certo se funcionava, pois não me lembro como tudo terminava, já era noite e tínhamos que ir dormir, e quando acordávamos, restavam apenas algumas gotinhas fracas, meio tímidas caindo ao pé da janela. Eram apenas vestígios daquela que um dia era motivo de alegria entre os amigos, e que em noites de solidão e frio nos assustava até que adormecêssemos ao colo de nossa mãe.
      Depois que cresci, me constitui como homem que depende de seu trabalho, confesso que continuo apreciando uma boa chuva, desde que não tenha nenhum compromisso fora de casa, como visitar amigos, ir à praça, até mesmo ir ao trabalho acompanhando-a através da janela do coletivo. Gosto de ficar na janela olhando a chuva que cai, acreditando que quem nunca tomou um banho dela não sabe o sabor que ela tem. Sair na chuva tem sido chateador porque não é confortável chegar a algum lugar molhado dos pés a cabeça. Entre tantas idas e vindas do trabalho, aprendi que a máxima popular que diz “quem vai pra casa não se molha” é verdade, mas só percebi que isso tem uma razão de ser quando tive que enfrentar muitas noites debaixo de temporais a caminho de casa. Percebi que cada gota que caia sobre mim não tinha o mesmo sabor de quando era menino que brincava e sorria com o frescor da água, mas tinha o gosto do descanso, do dever cumprido, da vontade de se jogar ao sofá e ver um pouco de TV ou apenas escrever algumas poucas linhas sobre qualquer coisa. Por estas e outras coisas um banho de chuva vale a pena.
           Redescubro minha paixão de infância ouvindo o som de outra chuva, não aquela da cidade que vivi quando criança, mas de uma chuva que mesmo acabando lá fora, continua aqui dentro, lavando, revirando, me tocando com a mesma harmonia e emoção que tenho quando paro e vejo que hoje é dia de chuva e, que não importa a direção de onde venha, mas que sempre será esperada em uma manhã, em uma tarde, em uma noite ou por uma vida inteira.
Maio de 2011.

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